Dirigido por Andrei Tarkovsky, O Espelho (originalmente Zerkalo) é um dos filmes mais enigmáticos e líricos já concebidos no cinema. Com roteiro assinado pelo próprio Tarkovsky e Aleksandr Misharin, a obra conta com atuações marcantes de Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev e a voz do poeta Arseni Tarkovsky, pai do diretor, que recita seus poemas ao longo da narrativa. Trata-se de Aleksei, um homem que revisita lembranças de sua infância e juventude enquanto lida com a iminência da morte. Mas O Espelho está longe de seguir qualquer convenção narrativa — sua estrutura é fragmentada, quase onírica, movendo-se livremente entre tempos, espaços e estados de consciência. Os temas centrais são a memória, a morte, a mãe, o tempo perdido, a culpa, a infância, a fragilidade da linguagem, e sobretudo a impossibilidade de capturar o real com exatidão. Cada plano é um recorte de existência interior, um reflexo — ou sombra — do que foi, do que poderia ter sido ou do que jamais se pode alcançar plenamente.
Produzido na União Soviética em plena década de 1970, sob o regime de Leonid Brejnev, O Espelho foi um desafio direto à estética dominante do realismo socialista, que exigia obras com narrativas claras, mensagens ideológicas explícitas e personagens exemplares. Tarkovsky, por sua vez, ofereceu uma obra pessoal, apolítica na superfície, mas radicalmente política por sua recusa em se submeter aos moldes impostos. O filme foi rejeitado várias vezes pelas autoridades, acusado de ser elitista, obscuro e inútil para o “povo soviético”. Ainda assim, Tarkovsky persistiu. O resultado é uma obra que ocupa um lugar de destaque em sua filmografia, sendo talvez a mais profundamente íntima — e ao mesmo tempo a mais universal. Inspirado diretamente em sua biografia, O Espelho traz a relação do diretor com sua mãe, a ausência do pai poeta, a infância vivida no campo durante a guerra, os sonhos, os medos, e os fragmentos difusos da consciência. É o cinema como expressão de alma. Quase uma oração.
E é justamente na linguagem que reside sua singularidade. Tarkovsky escolhe um cinema do tempo e da imagem poética, em que o sentido não está na sequência dos fatos, mas na justaposição sensível entre um plano e outro. A lógica é emocional, não racional. A montagem é feita como se o próprio inconsciente editasse. Nada é explicado, tudo é sentido. A chuva que cai no telhado velho, o fogo que consome uma casa em silêncio, o vento que atravessa os campos como um sussurro do passado — tudo parece carregado de um significado que escapa às palavras, mas que ecoa no espectador como um sentimento ancestral. A escolha da atriz Margarita Terekhova para interpretar tanto a mãe quanto a esposa de Aleksei não é apenas simbólica — ela reafirma a ideia de que as figuras femininas da memória e da vida real se confundem, como se a infância e a maturidade coabitassem a mesma dor.
Há cenas que parecem sonhos desdobrados em película: a mulher que flutua na casa destruída, a criança sozinha num campo envolto por neblina, o menino olhando fixamente para o espelho como quem busca encontrar a si mesmo e falha. A atmosfera é de febre e reverência, como se estivéssemos adentrando uma igreja das lembranças, onde cada imagem é um vitral de emoções perdidas. Tarkovsky manipula o tempo não como um cronômetro, mas como uma substância viva — elástica, subjetiva, carregada de memória. Ele não filma o que acontece, mas o que permanece depois que tudo já passou. A fotografia alterna entre cores lavadas e preto-e-branco, como se as recordações tivessem tons variáveis, nem sempre fixos, nem sempre confiáveis.
Em termos estéticos, poucos filmes ousaram tanto. Os longos planos-sequência, a câmera que parece deslizar como uma alma encarnada, os silêncios densos, os sons distantes, os poemas recitados em voz alta... Cada detalhe parece dialogar com o invisível. O cinema, aqui, não é janelas para o mundo, mas janelas para dentro da mente. Tarkovsky constrói uma gramática do indizível, onde a beleza surge no intervalo entre duas imagens, e onde a emoção brota no que não se mostra, mas se sugere.
O impacto de O Espelho foi, à sua época, mais reconhecido fora da União Soviética do que dentro. Mas o tempo lhe fez justiça. Hoje, é considerado uma das maiores realizações da história do cinema. Está presente em incontáveis listas de melhores filmes de todos os tempos, e é citado por diretores como Ingmar Bergman, Béla Tarr e Terrence Malick como referência insubstituível. Não é um filme fácil, nem deve ser. Sua profundidade exige entrega — não apenas atenção, mas escuta interior. É, para mim, o filme mais poderoso de Tarkovsky. E o coloco, sem hesitar, entre os dez maiores filmes já feitos, por sua coragem estética, sua beleza silenciosa, e sua capacidade de capturar o que a linguagem muitas vezes falha em dizer: o que significa existir, lembrar e desaparecer.
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